domingo, 29 de abril de 2007

Inutitulidade ou O Homem de Negócios de Negócios de Negócios...

Você está desempregado? Eu também. É difícil, não é? Qualificações, habilidades, escolaridade, experiência... "facilidade em intercomunicabilidade em inúmeros níveis"! Aposto que alguém já deve ter colocado isso no currículo. Você não? Talvez algo parecido. Entrevistas, dinâmicas (argh!) de grupo, olhares escrutinadores de "RHs" despreparados, pseudo-psicólogos que analisam até a maneira como você respira e pisca, tudo espreitando e conspirando contra a sua, ora, sacrossanta boa vontade em querer fazer alguma coisa, QUALQUER coisa, em troca de trocados, com o perdão do trocadilho. E não é que até realizar esta simples prostituição tem sido complicado, ultimamente?

Pois é. Acontece que existe uma nova forma de trabalho: o trabalho sobre o trabalho. Isso pode não ser tão novo quanto parece, mas do jeito visto hoje não tem precedentes. Bom, talvez desde o início da agricultura, nossa maior e imbatível revolução rumo ao progresso econômico, existissem trabalhadores cujo trabalho era pensar no trabalho de outros que faziam o trabalho. Detalhadamente, pessoas que não só estruturavam os procedimentos, mas que também pensavam o trabalho como fruto, produto, bem, matéria. Será? Vou admitir que não fiz pesquisa alguma para escrever estas bobagens, mas é muito provável.

Acontece que, hoje, tivemos a pachorra de ir além. A criação de novas áreas ou sub-áreas do conhecimento acorrentou os trabalhadores intelectuais ao mundo corporativo. Talvez isso não seja para sempre, mas, por enquanto, vemo-nos obrigados a estudar, trabalhar em e GOSTAR de assuntos como "comunicação corporativa", "gestão de pessoas", "relação com investidores", "sustentabilidade" (seja lá o que isso signifique), "responsabilidades" diversas, "hospitalidade" (receber gente rica, possíveis investidores), "análise de risco", "consultoria" disso e daquilo, "assessoria" para mais outro tanto de coisas, "saúde laboral" (!), psicologia do trabalho (!!!), etc, etc, etc.

Usei "trabalhadores intelectuais" não sem motivo. É claro que ainda existem aos milhões os braçais, peões, chão-de-fábrica ou como queiram chamar estes semi-escravos, que estão cada vez mais fora do que dentro das empresas, pois, com a globalização, tornou-se mais fácil explorar o labor de gente desesperada, mas lá do outro lado do mundo (ou aqui no Haiti), onde ninguém vai ver, nem reclamar, nem se compadecer dessas almas. Os robôs já fizeram sua parte ao remover uma quantidade monstruosa de pessoas dos processos de fabricação, das linhas de montagem. Mas, enfim, estes peões são cartas fora do baralho, ou pelo menos estão dentro das mangas dos ternos alinhadíssimos dos novos senhores de engenho.

Quero me ater a uma nova hierarquia no trabalho intelecutal, este considerado importante, e o surgimento de uma casta altíssima na escada para o sucesso. O dinheiro está em áreas que exigem níveis técnicos absurdos, mas com pagamentos igualmente absurdos. Quem hoje domina a tecnologia, domina a informação e domina o mundo. A Era da Informação já era. Foi um período criado pelos meios de comunicação para alimentar em nós a fantasia de que temos acesso a tudo, liberdade de pensamento, absorção de culturas até então remotas e produtos ainda mais fabulosos provindos dessas culturas. E o que fazemos com essa informação? No modo de pensar do capitalismo, rigorosamente nada. Podemos enfiar em algum lugar, fica a critério.

Esse conhecimento é mero troco, umas migalhas jogadas a todos (ainda não todos, mas quem sabe em breve) em reconhecimento à nossa obediência servil por um par de séculos. Se na Idade Média a arte e a técnica eram guardados a sete chaves pela igreja, hoje, fique tranqüilo: está tudo aí para quem quiser catar do chão. Esbalde-se com livros "subversivos", descubra na internet como construir uma bomba caseira, assista a filmes iranianos, decifre o código morse e até o DaVinci! Pouco importa. Sabe por quê? Nada disso vai te dar acesso ao dinheiro. Hoje, meu amigo, a informação que interessa é outra. Táticas militares são utilizadas em multinacionais, a chamada "inteligência", já ouviu falar? Pois bem, de nada vale a sua. Essa é para ganhar muito, mas MUITO dinheiro, com zeros que não cabem em banco nenhum.

Quanto à nossa mera inteligência, onde se encaixa nessa hierarquia? Para proteger inteligentemente todo esse esquema inteligente de inteligência, existem hoje trabalhos que se relacionam diretamente ao trabalho, é o chão-de-fábrica do novo poder. De um lado, mentirosos profissionais que servem para comunicar as benfeitorias de seus clientes e varrer o resto para baixo do tapete, entenda-se assessoria de imprensa (assim mesmo, com letras minúsculas, como todo título deveria ser). Outros mentirosos seriam os que estão preocupados com a saúde física e mental de seus funcionários, os que se preocupam com o impacto ambiental que a produção maçiça de seus clientes/empresas produz, e alguns similares. O resultado de seu trabalho é composto, na maioria das vezes, por números que devem deixar todo mundo contente. Quando se pode descontextualizar ou mascarar esses números, melhor ainda!

Dá para perceber? Todos esses títulos e novas áreas "importantes para os negócios" servem para que o trabalho seja justificado. E se o trabalho é justificado, o dinheiro e o poder de uns pouquíssimos, também. Trabalhamos no que vai interferir no trabalho e distanciamo-nos da produção em si. Não sei dizer, a essa altura do texto, se isso é bom ou ruim, mas soa estranho que falemos e pensemos mais em maneiras de viabilizar, assessorar, sustentar, analisar e permitir o trabalho do que fazê-lo. Se temos cada vez mais urgência em provar o valor de nosso trabalho, só pode significar que ele o está perdendo. Temos títulos e mais títulos para trabalhos esdrúxulos, mas o próprio trabalho fica dando voltas em torno de si mesmo, aproximando as pontas de uma linha de progresso que em breve será um círculo, uma loucura feita só por ser feita, para que uns teham o poder, só pelo poder.

Com mais gente, vêm mais responsabilidades, mais nomes, mais assessorias, análises, auditorias (auditores são os dedos-duros dos negócios, para garantir que a grana está no lugar certo) e fiscalizações, evidenciando uma desconfiança que já nasceu com a concorrência capitalista ou que, aliás, já nasceu conosco, sendo o motor da busca nervosa por poder sobre nossos semelhantes, da nossa evolução, do nosso progresso. O mais interessante é que toda essa atenção sobre os procedimentos acaba apenas criando mais brechas para que negócios sujos sejam feitos. Como? Corrupção. Não é mais fácil apenas corromper quem fiscaliza do que quem faz? Aí temos o tráfico comendo solto, o contrabando de armas, de INFORMAÇÃO... Tem quem venda a alma por uma cifra escrita em guardanapo. Isso alimenta ainda mais essa concorrência de guerra mundial, mas o jogo é esse, não é?

Algum engravatado rico (pois nem todo engravatado é rico e vice-versa) poderia dizer:

- Mas você está simplificando demais! Nesse contexto, é claro que tudo isso parece ridículo, mas nós estamos ditando os rumos da humanidade, seu sustento diário, a perpetuação da espécie!

E tem como complicar mais do que já o fazem? Perpetuando a espécie com certeza estão, só não sei que espécie é essa. Talvez a E$PÉCIE. Um dia precisaremos, se já não precisamos, de auditores que façam auditoria nos auditores dos auditores, dos auditores... Mas, claro, não é assim que vai se chamar. Será a Audi3pG Carlson-Kramer 9005, ou coisa que o valha. E talvez até o Carlson ou o Kramer ganhem um prêmio Nobel por isso, simplificar o mundo dos negócios e, conseqüentemente, a nossa vida. Bom, eu não estou vendo a vida se simplificar em nenhum aspecto. É fácil confundir simples por cômodo, habitual. Estamos nos acostumando a pensar em todas as coisas de maneira mais complicada, a ponto de se tornarem simples, ou, quando somos apenas mão-de-obra barata, limitamo-nos a relegar essa rotina complicada aos nossos superiores, o que complica ainda mais a nossa simplificação da vida. Pode parecer complicado, mas é simples: ficamos escravos de tudo o que construímos.

Assistir: Syriana. Fabuloso filme que fala muito mais sobre isso do que a bobajada acima. Mas é bom assistir com atenção, talvez duas ou três vezes. É, é complicado.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Não dá

Agora eu queria começar a escrever. Ia comentar o último livro que li, quantas idéias interessantes... não posso mais escrever. Tocou o telefone, era um vendedor que sabia o meu nome, ele me disse que a oportunidade que ele tinha reservada especialmente para mim era única, imperdível, é uma coleção dos maiores best-sellers de todos os tempos, eu pagaria por eles em prestações levíssimas no cartão de crédito, falei que pensaria a respeito, afinal todo mundo já leu, não sei se quero ficar de fora. Eu ia até tentar escrever. Estava com um pensamento bastante fértil na cabeça, sobre originalidade e o contrário dela, como tudo hoje em dia é reproduzido em massa... não posso mais escrever. Deixei a televisão ligada, está passando uma matéria que me chamou tanto a atenção, sobre um artista famoso da antiguidade que vai ter suas obras estampadas em camisetas e bonés, tudo em prol das crianças do Camboja que passam fome, parece que foi idéia de um estilista bastante conceituado na sociedade, que já pintou quadros nas ruas da Europa, passou dificuldades financeiras em sua juventude, fico pensando se não seria essa uma nova forma para a arte, que funciona, uma coisa tão acessível e ainda por cima com um propósito tão bonito, será que eu quero ser mesmo artista, pois não me vêm essas idéias inovadoras à cabeça, devia expandir os meus horizontes, como a própria personalidade que fala na televisão diz que todos têm de fazer. Será que vou ter tempo de escrever, ainda? Tantas vozes gritando dentro de mim desde o sonho que tive na noite passada, alguém me dizia para ficar de olhos abertos para a manipulação, outra voz falou em escravidão, isso seria material interessante para um texto... não posso mais escrever. Lembro-me, agora, tenho que procurar emprego, pois o dinheiro que ando ganhando não é digno, nem suficiente, nem o jeito como eu o gasto é bom, eu não trabalho o montante de horas necessárias e nem tenho um emprego direito e justo para poder comprar as coisas que o vendedor do telefonema me disse que preciso ter, fora que o trabalho enobrece o homem e ando me sentindo tão longe da nobreza, estaria mais perto dela com um terno e uma gravata, há empresas com propostas tão claras para melhorar a vida das pessoas, eu devia trabalhar numa delas ao invés de ficar me masturbando com esse suposto trabalho, afinal, não pode ser considerado trabalho algo que me deixa aí solto para fazer meus próprios horários e as coisas que eu gosto, poder falar das que eu não gosto, isso seria muito egoísmo, ninguém tem o direito de ficar fazendo seus próprios horários enquanto os outros ralam o dia inteiro, não têm tempo nem para pensar, comer, ver os amigos e a família, os filhos, respirar, se comunicar, amar, ler, ir ao cinema, ao teatro, estudar, e desmaiam em suas camas, à noite, pois ir dormir simplesmente quando se está com sono é realmente coisa de vagabundo. Mas será possível? Tenho tanta coisa importante para me preocupar que não estou conseguindo escrever! Queria falar do amor, das mulheres, hoje conversei com uma garota linda no ponto de ônibus, ela veio me pedir uma informação sobre o itinerário e acabamos trocando umas palavrinhas, ela é muito inteligente, gosta de poesia, estava indo para a faculdade (ela faz o curso de letras) fiquei extasiado, e que graça ela tem, que olhar interessante, pena que não pude conversar mais com ela, foi tão rápido, o ônibus dela passou e... não posso mais escrever. Não posso, imagine, daqui a pouco estou com 30 anos, preciso me casar, dividir meus bens com uma mulher, não precisa ser uma mulher incrível, só alguma que satisfaça por um tempo as minhas necessidades fisiológicas, lave minhas roupas com amaciante, faça uma comidinha gostosa, seja simpática, hora ou outra ela me dá um ou mais herdeiros, como na vida normal, assim, como deve ser, a gente vai poder exibi-los nas festinhas dos nossos queridos amigos, vou adorar elogiar os filhos deles, apesar de eu achar aquele ali um pouco mimado, mas, bom, ele tem o direito de ter tudo aquilo que os pais ralaram a vida inteira para dar a ele, tantos brinquedos caros, escola particular, isso é que é uma criança de sorte, não precisa ter contato com aquelas pobres e desgraçadas crianças do Camboja, ou mesmo as daqui, elas vão crescer seguras num condomínio fechado, ah, como é bom poder ter um pouco de paz, apesar de que vai haver muitas brigas no meu casamento, provavelmente, dependendo da mulher e do meu estado de espírito (ela pode ter olhado diferente para aquele meu amigo cafajeste, será que ela está me traindo?) podem até ser aquelas de quebrar coisas, quando os vizinhos chamam a polícia, mas taí uma coisa perfeitamente normal numa relação homem/mulher, é melhor do que ficar por aí solteirão, não pega bem. Juro que estou tentando escrever. Imaginei uma tirada cômica qualquer, alguma paródia da vida cotidiana, algo que fizesse o mais duro dos homens rir, mas ao mesmo tempo estou checando meu correio eletrônico, um amigo enviou-me uma montagem hilária de fotos, estão tirando sarro de uma mulher gorda que tenta entrar num carro pequeno, há, há, há, mal consigo me conter, que pretensão a minha querer escrever algo cômico, já tem tanta gente criativa por aí, olha só, tem outro, meio pornográfico, um rapaz tentando convencer uma garota a praticar sexo oral com uma sacada tão perspicaz, há, há, há, estou até chorando de rir, isso é que é humor, eu devia mesmo era criar uma página na internet para mostrar esse tipo de coisa, todas as minhas besteiras, talvez eu fique até famoso por isso, quem sabe, essa era da informação dá tanta liberdade para as pessoas se expressarem, como nesses blogs, é isso, um diário público “virtual”, seria tão prático, eu não ia precisar me preocupar tanto em escrever, seria só colocar o que aconteceu no meu dia, praticamente uma crônica cotidiana pessoal, isso sim é democracia, todo mundo tem seu espaço na grande teia mundial. Até comecei a esboçar umas linhas, mas, ah, tanta coisa para pensar, tantos projetos de vida. Nem sei se quero mais escrever, acho que quero, mas está ficando tarde, afinal de contas, escrever não vai me levar a lugar algum, ninguém vai ler, mesmo, o que vale é meu sucesso individual, o progresso de cada um, preciso comprar um lugar só meu, preciso chamar tantas coisas de “só minhas”, isso é que é importante, progredir na vida, vencer, tem gente que não vê isso, era sobre elas que eu queria escrever, na verdade, sobre essas pessoas medíocres que não aprendem nada, não sabem aproveitar o dia, a vida! Eu bem sei, mas estou vendo que hoje não vou poder escrever.

AllanZi - 17/09/2003