segunda-feira, 22 de abril de 2013

Religare

Este post será bem direto e reto. O caro desleitor já deve ter se confrontado com as seguintes questões: "Você tem religião?/Você foi batizado?" "Você acredita em Deus?" "Você acredita em quê?" - e assim por diante, o que, conforme a resposta, vem acompanhado de certas expressões faciais de aprovação/desaprovação, surpresa, estranheza, etc. Afinal, vemos o outro pelo filtro de nossas ideias, crenças e descrenças, e a coisa fica muito mais sensível quando alguém segue determinada doutrina, culto, disciplina - algo que soa verdadeiro para aquela pessoa e que ela sente valer a pena ser seguido.

Sobre a origem da palavra, encontrei esse curto post e achei interessante.

E é só. Mas se posso apenas comentar isso, sem entrar em papos linguísticos, a "falsa etimologia" é mais legal que a explicação oficial, no fim das contas, pois a ideia de "religação" também pode ser aplicada a grupos, a um agrupamento de pessoas dentro da mesma fé. O som de "religião", para mim, sempre remeteu a "reunião".

E assim, volto para a minha primeira experiência, ou uma das primeiras, nesse campo. Tinha uns nove anos quando ia de carro com alguns amigos da mesma idade para algum lugar - ao volante, a mãe de um deles, que solta a pergunta: "E você, Allan, não vai se batizar e fazer primeira comunhão?" O tom não era exatamente de reprovação ou ameaça, mas havia gravidade nas palavras, algo de austero. A tradução disso na minha mente em desenvolvimento foi: "Ai, caramba, será que eu vou ficar sem amigos se não frequentar o 'catecismo'? Será que só eu não terei religião? Será que Deus vai me castigar?"

Esse tipo de constrangimento era comum justamente na época em que amiguinhos estavam prestes a passar pela tal da comunhão. Olhando para esses mesmos amigos hoje, uns mais, outros menos próximos de mim, vejo que esse rito católico de passagem não os tornou mais ou menos religiosos. O que observo em muitos é que o mero fato de "ser" católico parece lhes garantir uns pontos com Deus, evitando que Seu castigo recaia sobre eles, mesmo que cometam os mais variados pecados. O pensamento dessa grande maioria de cristãos "não praticantes" é, mais ou menos: "Não vou à igreja, mas fui batizado e comunguei, estou coberto, a salvo!" E parou por aí a experiência religiosa dessas pessoas: procurem o significado de comunhão no dicionário e vejam que o ritual não mudou muito suas vidas e a maneira de se relacionar com o próximo.

Outros cristãos, os evangélicos, tendem a ser muito mais ativos dentro e fora de seus grupos e a euforia com que participam das reuniões e também com que externam sua fé aos não iniciados tem se espalhado com grande velocidade pelo Brasil. Essa paixão costuma se intensificar quando são mostrados exemplos que se livraram de inúmeras mazelas por meio de milagres e outros frutos da sua crença. O estigma "crente", inclusive, é atribuído a eles sem que se pense muito a respeito, a ponto de uma criança se dizer crente apenas por que o pai o é, não tendo ainda discernimento para acreditar ou não no que dizem as escrituras sagradas. O levante evangélico tem estendido o poder de pastores à esfera política (e a um papel moralizante), mas não vou entrar nesse mérito pois esse é apenas um devaneio que vai culminar nas minhas próprias escolhas religiosas. Aguardem!

O ateísmo merece um capítulo à parte. Não sei se é apenas a minha percepção, mas noto nos diversos canais internéticos um esforço grande para consolidar o conceito do "que é ser ateu" e, mais ainda, gerar embate direto com quase todas as religiões. O ateu moderno é uma espécie de anti-Deus e anti-religião, vítima de uma sociedade cristã, mas não está atento ao fato de se aproximar do que fazem todas as religiões: unir pessoas em torno de uma crença. Afinal, é preciso acreditar na não existência de Deus, não? Passando por alguns vídeos no YouTube e fóruns que pregam o ateísmo, vê-se que há muito ceticismo e exaltação do rigor científico para explicar o mundo, e há também um tipo de paternalismo sobre as religiões. "São todos ignorantes, como crianças, precisamos mostrar a verdade, que Deus é uma farsa!" Novamente, pode ser só a minha torpe imaginação, mas me parece que essas pessoas querem justificar com a inexistência de Deus sua própria tristeza e solidão - sua "não religião", seu desligamento e desconexão. A realidade dura do dia a dia parece ser mais fácil de aceitar se for resultado apenas de reações químicas, união aleatória de moléculas e explicações afins para a vida.

Pessoas que optam por seguir religiões de origem africana sofrem certo preconceito, pois a mística envolvida nos rituais soa meio "satânica" à maioria dos cristãos. Tenho pouquíssimo conhecimento nessa área e, assim, não vou reforçar esse preconceito. A comunidade espírita, por sua vez, tem aumentado, e a presença do tema em filmes popularizou a religião; uns dizem não ser religião, assim como algumas correntes "racionalistas" e "cósmicas" exaltam a ciência e misturam tudo num grande caldeirão. Esse parágrafo foi só pra não dizer que não falei desses temas, pois me deu certa preguiça, admito.

Não sou batizado em nenhuma religião. Muitas vezes, respondi àquelas mães de amigos catequizados que minha família preferiu me dar a liberdade de escolher o que eu quisesse seguir. Assim foi! Hoje leio, assisto e ouço muitos professores e guias espirituais e não escondo ser atraído por linhas mais pro lado oriental do pensamento. Está na modinha, eu sei, ser budista e seus derivados, ir à Índia e "descobrir-se", meditar e exercitar o espírito com mantras e práticas de transcendência. Não é o meu caso. O que todos os espiritualistas que li parecem ter em comum, o que me interessa mesmo nesse tipo de ensinamento, é um chamado para ASSUMIR A RESPONSABILIDADE pela sua vida - não entregar "a Deus" o seu caminho, não atribuir ao destino tudo o que lhe acontece, mas entender que você é TUDO o que há. Assim, em você está a guerra e a paz, a raiva, a calma, tudo o que você quer para você e critica nos outros - portanto nosso pensamento e nossas ações contam. Sentimos dentro de nós aquilo que nos faz vivos (pare agora e sinta o que está por trás do pensamento. Tem algo, não tem?), e isso vale para quem segue ou não todo tipo de religião; e cuidar dessa UMA coisa, essa fonte eterna de vida, é o que é, para mim, ser religioso. 

A origem correta da palavra, a que rejeitei no início do texto, faz sentido aqui, para quem teve preguiça de clicar no link: "relegere, em que re-, "de novo", está associado ao verbo legere, "ler", abrigando o sentido de "tomar com atenção". Uma pessoa vive a religião quando, uma e outra vez, cuida escrupulosamente de algo muito importante, algo que deve ser cultuado." 

E o que é mais importante que a vida?

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Este é o centésimo post do The Passed Pawn! E eu vou comemorar: uhú!

terça-feira, 9 de abril de 2013

Nada pessoal


Pela primeira vez no blog, vou postar um texto alheio. Ele mudou minha percepção das coisas. O original está em http://vividlife.me/ultimate/30100/dont-take-anything-personally e esta abaixo é uma tradução totalmente livre feita por mim. É meio longo, então, sente-se confortavelmente ou fique à vontade para desistir. Espero que goste, caro desleitor!

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Imagine que você está em um shopping gigantesco com centenas de salas de cinema. Você olha em volta para ver o que está passando e nota que o título de um dos filmes é o seu nome. Incrível! Você entra na sala, que está vazia, exceto por uma pessoa. Bem discretamente, para não interrompê-la, você se senta atrás dela, que nem percebe a sua presença; toda a atenção dela está no filme.

Você olha para a tela e, que surpresa! Reconhece todos os personagens do filme - sua mãe, seu pai, seus irmãos e irmãs, seu amor, seus filhos, seus amigos. Então você vê o protagonista do filme e é você! Você é a estrela do espetáculo e essa é a sua história. E aquela pessoa na sua frente, bem, também é você, vendo você mesmo atuar no filme. É claro, o protagonista é apenas como você acredita que é, assim como acredita serem os coadjuvantes, porque, bom, você conhece sua própria história. Após um tempo, você fica um tanto impressionado com aquilo tudo e decide ir até outra sala.

Nessa sala também tem só uma pessoa assistindo e ela não percebe nem que você se sentou ao seu lado. Você começa a assistir também e reconhece todos os personagens, mas, dessa vez, você é apenas coadjuvante. Essa é a história de vida de sua mãe, e é ela quem está ali, completamente atenta ao filme. Aí você percebe que sua mãe não é a mesma pessoa que estava no seu filme. O jeito como ela se projeta é totalmente diferente no filme dela. Esse é o modo como sua mãe quer que todos a vejam. Você sabe que não é autêntico. Ela está atuando. Mas você começa a entender que é como ela se vê e fica um pouco chocado.

Então você percebe que o personagem que tem o seu rosto não é a mesma pessoa que estava no seu filme. Você diz a si mesmo: "Ah, esse não sou eu", mas agora você sabe como sua mãe te vê, no que ela acredita a seu respeito, e está longe da sua crença sobre você mesmo. Aparece o personagem do seu pai e o jeito como sua mãe o percebe, e não tem nada a ver com o jeito que você o vê. É completamente distorcido, assim como a percepção da sua mãe em relação aos outros personagens. Você vê o que sua mãe pensa a respeito de seu companheiro e fica até um pouco irritado: "Como ela ousa?!" Você se levanta e sai de lá.

Na sala ao lado está passando a história do seu amado. Agora você pode ver qual é a percepção dele a seu respeito e o personagem é absolutamente diverso daquele do seu filme ou do filme da sua mãe. Você percebe como ele vê seus filhos, sua família, seus amigos. Você vê como ele quer ser visto e não é a forma como você o vê, de jeito algum! Você sai do filme e vai assistir ao de seus filhos, como eles te veem, como veem o vovô, a vovó, e você mal pode acreditar. Aí você vê os de seus irmãos e irmãs, os filmes dos seus amigos, e você descobre que todo mundo distorce todos os personagens em seus filmes.

Depois de ver todos esses filmes, você decide retornar ao primeiro cinema para ver o seu próprio mais uma vez. Você se vê atuando no seu filme, mas já não acredita no que vê; você não acredita mais em sua própria história pois pode ver que é apenas uma história. Agora você sabe que toda a atuação em que se empenhou a vida inteira não serviu de nada, pois ninguém te percebe do jeito que você quer ser percebido. Você entende que todo o drama acontecendo no seu filme não é percebido por ninguém ao seu redor. Fica óbvio que a atenção de cada um está em seu próprio filme. Eles nem percebem que você está sentado bem ao lado deles no cinema! Os atores estão com toda sua atenção voltada para seu próprio roteiro e é a única realidade em que eles vivem. A atenção deles está tão viciada na sua própria criação que eles nem percebem sua própria presença, aquele que está observando o filme.

Nesse momento, tudo muda de figura para você. Nada mais é a mesma coisa, pois você vê o que está realmente acontecendo. As pessoas vivendo em seus próprios mundos, seus filmes, suas histórias. Eles apostam todas as suas fichas naquela história e ela é verdadeira para eles, mas é uma verdade relativa, porque não é a verdade para você. Agora você pode ver que todas as opiniões que eles têm sobre você são dirigidas àquele personagem de você que vive no filme deles, não no seu. Quem eles estão julgando por você é o personagem de você que eles criaram. O que quer que seja que pensem de você é, na verdade, sobre a imagem que têm de você, e essa imagem não é você.

A essa altura, está claro que as pessoas que você mais ama não lhe conhecem e você também não as conhece. A única coisa que você sabe sobre elas é aquilo em que acredita a respeito delas. Você conhece apenas a imagem que criou para cada uma delas, e a imagem nada tem a ver com aquela gente. Você pensava que conhecia seus pais, seu cônjuge, seus filhos e amigos muito bem. A verdade é que você não faz a menor ideia do que está acontecendo no mundo deles, o que pensam, o que sentem e com o que sonham. O que mais surpreende é que você pensava que conhecia a si mesmo. Então vem a conclusão de que você nem conhece você mesmo, pois está atuando há tanto tempo que dominou a arte de fingir ser o que não é.

Consciente disso, você percebe como é ridículo dizer: "Minha esposa não me entende. Ninguém me entende." É claro que não entendem. Nem você se entende. Sua personalidade muda de um minuto para outro, conforme o papel que está interpretando, de acordo com os coadjuvantes na sua história, a ver com os seus sonhos naquele momento. Em casa, você tem certa personalidade. No trabalho, tem um jeito totalmente distinto. Com suas amigas, é uma coisa; com seus amigos, outra. Mas ao longo de toda a sua vida você supôs que as outras pessoas te conheciam tão bem, e quando elas não agiram como você esperava, você levou para o lado pessoal, reagiu com raiva e usou as palavras para gerar um monte de confusão e drama à toa.

Assim fica fácil entender porque há tanto conflito entre seres humanos. O mundo está povoado com bilhões de sonhadores que não estão cientes que os outros estão vivendo em seus próprios mundos, sonhando seus próprios sonhos. Da perspectiva do protagonista, que é seu único ponto de vista, tudo tem a ver com eles. Quando um personagem secundário diz alguma coisa que não bate com a história deles, eles ficam nervosos e tentam defender seu ponto de vista. Eles querem que os outros integrantes da história sejam como eles querem que sejam, e se não são, ficam magoados. Eles levam tudo para o lado pessoal. Com essa consciência, você também compreende a solução. É algo muito simples e lógico: Não leve nada para o lado pessoal.

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Este é o trecho do livro "O Quinto Acordo: Guia Prático do Autodomínio" (tradução livre), de Don Miguel Ruiz. Ele é de uma família de curandeiros mexicanos e carrega centenas de anos do legado místico e conhecimento do povo Tolteca. Ele passou por uma experiência extracorpórea após um grave acidente de carro que mudou sua vida, e hoje dedica-se transmitir o conhecimento adquirido em inúmeras viagens a lugares sagrados em todo o mundo.